As rotas perigosas realizadas pelos migrantes forçados
Os direitos dos refugiados e migrantes tem sido tema de grande debate entre os especialistas do Direito Internacional em especial no que diz respeito às migrações forçadas.
As rotas feitas por estes migrantes são muito perigosas, como por exemplo a rota Marrocos – Espanha e a rota do Mediterrâneo, considerada uma das mais letais do mundo. Só no primeiro semestre de 2021, segundo a OIM, 1.146 pessoas morreram tentando chegar à Europa, mais que o dobro do mesmo período de 2020.
No primeiro exemplo, o Marrocos tem um acordo com a União Europeia para controlar a passagem de migrantes pelas suas fronteiras. No início de 2021, o Marrocos permitiu a passagem de 8 mil pessoas em direção à Espanha, buscando utilizar politicamente estes migrantes como maneira de forçar a Espanha em questões políticas e diplomáticas.
Sendo que este não é o único caso, a Turquia também se utilizou politicamente dos migrantes forçados que passam pelo seu território em direção a outros países.
Assim, fica claro que é primordial que estas pessoas consigam percorrer rotas seguras e legais para atingirem seus objetivos. Mas, a dúvida que fica é até que ponto este objetivo de uma migração ordenada, regular e segura estará incluída nos acordos que a União Europeia tem feito com outros Estados.
Conceito do Pacto Global de Migrações
Um importante documento que busca garantir uma migração mais segura, ordenada e regular, é o Pacto Global das Migrações.
Este Pacto é produto de um longo processo, o qual teve um de seus últimos grandes passos dado pela Declaração de Nova York sobre refugiados e migrantes de 2016, que trouxe avanços:
- Do ponto de vista político, com maior consenso entre os Estados, reforço da solidariedade internacional, reafirmação da necessidade de respeitar os direitos humanos dos refugiados e migrantes;
- E do ponto de vista conceitual, no qual reforçou-se o papel das comunidades de abrigo (e qual a abordagem desta comunidade em relação a estes indivíduos) e a maior responsabilidade de agências e demais instituições.
Como produto deste processo o Pacto Global das Migrações é um acordo intergovernamental, adotado em Marrakech em 2018 e promovido pelas Nações Unidas. Este tem como objetivos melhorar a governança da migração (série de
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redes políticas e arranjos estabelecidos entre diferentes atores no sistema internacional) e enfrentar os desafios associados com a migração hoje.
Os principais pontos tratados no Pacto são: o combate ao tráfico de pessoas; a cooperação entre embaixadas e consulados; o combate à xenofobia; a criação de mecanismos para garantir a integração do imigrante com a sociedade receptora e a promoção da convivência amistosa.
O Pacto Global de Migrações como integrante da Soft Law
O Pacto Global de Migrações é considerado como parte da Soft Law, normas que não obrigam os Estados da mesma forma que as demais fontes vinculantes do direito internacional (ex.: memorandos de entendimento, declarações, atas finais, agendas e programas de ação, recomendações). Diferente de documentos da Hard Law, que geram normas cogentes, obrigatórias, como os tratados internacionais.
Estes Pactos que integram a Soft Law, tem o objetivo de assegurar os direitos dos refugiados e oportunidades de vida para estes indivíduos, com o envolvimento de diferentes atores, um agrupamento de boas práticas e a busca pela solução de problemas relacionados à cooperação e a responsabilidade em áreas da institucionalização formal e da reciprocidade direta que são mais difíceis de se atingir.
Afirma o professor Thomas Gammeltoft-Hansen, que o Pacto Global, enquanto uma escolha de instrumento tende a enfatizar a cooperação prática e política ao invés de um compromisso legal.
Dessa forma, a pergunta que surge é: qual o alcance desses tipos de medidas não obrigatórias?
Nesse sentido, um instrumento de Soft Law pode ser um primeiro passo no processo de produção normativa ao fornecer regras mais detalhadas ou demais parâmetros técnicos que são necessários para a interpretação e a implementação de normas já existentes de direito internacional.
A partir desta constatação, se faz necessária a investigação das dinâmicas de influência das normas de Soft Law nas normas de Hard Law dentro do espectro do direito internacional dos refugiados.
Como exemplo disto, cita-se a Lei Brasileira n. 9.474, de 22 de julho de 1997 que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 (Hard Law). Tal lei nasceu como fruto do Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996 (Soft Law). Tal Programa, por sua vez, foi elaborado por recomendação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena de 1993.
Assim, de um mecanismo diplomático, como a Conferência surgiu um instrumento de Soft Law que posteriormente influenciará a elaboração de uma norma de Hard Law. Demonstrando que o Estado produzirá mais facilmente uma norma de Hard Law se atores e órgãos do direito internacional elaborarem juntos normas de Soft Law antecedentes e recorrentes que transpassam o interesse social presente na sociedade internacional.
Em um segundo momento, este processo vem para reafirmar, reforçar princípios já existentes em instrumentos vinculantes, exemplo: princípio do non-refoulement. A ideia das normas em cascata (norm cascade), nos induz à ideia da existência prévia de normas não vinculantes e o consenso que emerge para que os Estados se liguem a estes mecanismos, o que parece de fato estimular o desenvolvimento de normas vinculantes. Existindo, porém opiniões contrárias como as de Lagoutte, Gammeltoft-Hansen, e Cerone, que explicam que isso nem sempre aconteceria.
Em outra perspectiva, existe o aspecto negativo deste processo, já que estes instrumentos, também podem revelar o intuito do Estado em postergar o desenvolvimento de normas vinculantes. Como exemplo pode-se citar o caso da Convenção de 1951, em que verifica-se a sua dificuldade em lidar com a maior parte das situações de refúgio hoje em dia, mas ainda sim continua sendo o único instrumento vinculante sobre o tema.
O Pacto Global das Migrações foi aprovado em um momento em que o direito dos refugiados está sob uma pressão considerável devido aos números e aumento dos fluxos migratórios dos últimos anos. Um dos seus elementos mais fortes é a previsão de um novo compromisso com uma divisão igualitária de responsabilidade entre todos os Estados-Membros, em três aspectos: a) acesso ao território; b) mecanismos de acolhimento; c) e concessão de asilo aos que precisam.
Mas, apesar do valor político do Pacto, ele não traz nenhum elemento normativo que determine com precisão este compromisso. Ele se apresenta como uma oportunidade de garantir que os Estados venham dar suporte ao direito dos refugiados, integrando standards já existentes de um regime jurídico com diversos instrumentos de forças normativas distintas, incluindo aí a ferramenta da cooperação internacional.
Não há dúvidas que no direito migratório verificamos a tensão entre uma abordagem positivista dos Estados que buscam perseguir seus interesses particulares e uma abordagem no plano bilateral ou multilateral que busca acordos para tratar de questões que envolvem progressivamente toda a sociedade internacional (alinhamento da Carta das Nações Unidas em seu art. 13).
O Pacto Global de Migrações e o posicionamento brasileiro
Conforme explicado pelo Professor Roberto Georg Uebel, nos governos Lula e Dilma (2003 a 2016), o Brasil trouxe para o centro da sua política externa, ainda que de forma não contínua entre os dois governos, a pauta migratória. O que causou, de acordo com o Professor Uebel, uma hiperdinamização das migrações. Sendo que no governo Lula, os eixos da política externa migratória eram:
1. A missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti, que posicionou e impactou o Brasil, especialmente, em relação aos fluxos migratórios latino-americanos, com a vinda de um grande números de haitianos para o Brasil, sendo possível considerar a MINUSTAH um marco de inauguração da política externa migratória brasileira. No segundo mandato de Lula, houve uma intensificação desta política, colocando em ênfase o Sul-Global com o Mercosul;
2. As missões humanitárias na África que consolidaram a construção de alianças com os parceiros no âmbito Sul-Sul, inaugurando novo capítulo nas relações Brasil-África;
3. A liderança dentro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que colocou o Brasil como protagonista e forte candidato como país acolhedor (host country) de imigrantes de língua portuguesa;
Já no governo Dilma, os principais eixos segundo o professor foram:
- O programa Mais-Médicos, que foi extremamente controverso, impactando a opinião pública. O professor Uebel explica que foi o primeiro programa de imigração subvencionado pelo governo brasileiro desde o Império, com fluxo migratório de ordem profissional;
- Os programas de cooperação e concessão de bolsas de estudo e pesquisa;
- A propagação do país pelas redes migratórias internacionais do trabalho, que segundo alguns autores foi o mais próximo que o Brasil chegou da criação e da efetivação de uma Política Migratória Nacional.Já mais recentemente, em 10 de dezembro de 2018, o governo de Michel Temer (MDB) e representantes de outros 164 países aderiram ao Pacto Global de Migrações.
Atualmente, no governo do Presidente Bolsonaro, o Brasil se retirou do Pacto, pois acredita que o assunto da migração diz respeito à soberania do Estado, ocorrendo uma ruptura no curso que a política externa estava tomando nos governos anteriores.
Desde o início, Bolsonaro esteve sempre alinhado com o governo do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Posicionando-se como anti-imigração, Bolsonaro deu declarações bastante polêmicas sobre migrantes e refugiados, inclusive em momentos anteriores de sua eleição. Em 2015 ele se referiu a imigrantes haitianos como “escória do mundo”.
Essa visão se refletiu posteriormente em seus atos oficiais e na política pública brasileira, como exemplo a portaria 666 de 2019 do Ministério da Justiça e Segurança Pública que fala sobre “pessoa perigosa” para se referir ao migrante que será impedido de entrar no Brasil – portaria que para um estudioso de direito migratório ficava evidente o retorno ao paradigma da década de 80 quando da implementação do Estatuto do Estrangeiro, que é o oposto da Política Migratória Brasileira inaugurada com a Lei de Migração de 2017, que abriu um grande campo de trabalho para advogados internacionalistas e foi vista pela doutrina como a maior mudança de paradigma em décadas em relação ao tema da migração. Lei que também foi criticada por Bolsonaro.
Portanto, voltou a ganhar força no Brasil o discurso do imigrante como uma ameaça à segurança. Bolsonaro, ao falar sobre o Pacto Global de Migrações disse que “não é qualquer um que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto adotado por terceiros”.
De outro lado, o governo Bolsonaro, por meio de um decreto formalizou a dispensa de visto para turistas do Japão, Austrália, EUA, Canadá, países nos quais os brasileiros não têm a mesma prerrogativa, desconsiderando o princípio da reciprocidade que constitui uma das bases das relações internacionais.
Lembrando, assim, de períodos em que este discurso já prevaleceu no Brasil, de migração seletiva, em que existiria o “imigrante bom” e o que “não é bom”, de um ponto de vista estritamente econômico, sem considerar uma abordagem multifacetada do aspecto migratório, colocando em cheque o que propõe o Pacto Global de Migrações.
FONTES:
MENDES, J.S.R.; MENEZES, F.B.B.(de). Política migratória no Brasil de Jair Bolsonaro: “perigo estrangeiro”e retorno à ideologia de segurança nacional. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades. Salvador, n. 247, p. 302-321, maio/agosto, 2019.
SHELTON, Dinah (org.). Commitment and Compliance: The Role of Non-Binding Norms in the International Legal System. Oxford University Press, 2003. p. 461.
GAMMELTOFT-HANSEN, Thomas. The Normative Impact of the Global Compact on Refugees. Oxford University Press: International Journal of Refugee Law. Vol. 30, n. 4, p. 605–610, dezembro, 2019.
UEBEL, Roberto Rodolfo Georg; RANINCHESKI, Sônia. Política Externa Migratória do Brasil: a política imigratória brasileira. Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais. Santa Vitória do Palmar, Vol. 2, n. 3, p. 87-112, setembro/dezembro, 2020.