O fundamentalismo islâmico e seu impacto nos fluxos migratórios

Conceito e origens do fundamentalismo islâmico e sua conexão com as migrações forçadas

O fundamentalismo islâmico é uma parte pequena da cultura islâmica que se manifesta numa perspectiva anti-ocidental, anti-modernizante e voltada para o estabelecimento de relações rígidas em torno dos preceitos religiosos com o objetivo jihadista, de implementação de uma guerra santa. O islã radical se opõe ao Ocidente, e para isso, é necessária a difusão da sua fé, a conversão dos infiéis, a atuação com violência em nome de Alá.

As origens deste fanatismo, conforme alguns autores, se encontram no séc. XVIII na Árábia Saudita com o surgimento do movimento chamado Wahhabismo, no qual se acreditava que o Islã estaria corrompido e que comportamentos contrários aqueles dispostos pela ortodoxia muçulmana não deveriam ser permitidos. A Jihad seria o caminho, assim, morrer no caminho de Alá seria algo esperado e não temido.

Já quanto ao fenômeno do refúgio, é possível perceber que esse não é seletivo com as religiões, pois pode ocorrer com qualquer ser humano, sendo na condição de perpetrador ou de vítima de perseguições ou violações de direitos humanos.

Compreende-se isso, quando se pensa na história das lideranças religiosas que já existiram no mundo e sua associação com alguma forma de exílio. Como exemplo podemos citar Abraão que foi em busca da terra prometida, liberou os judeus da escravidão imposta pelos egípcios, Jesus de Nazaré que foi perseguido por Herodes e que fugiu para o Egito, Dalai Lama que não viveu no Tibet, mas na Índia.

Nesse sentido, por causas religiosas muitos fluxos migratórios se instauraram na história da humanidade, com seus apoiadores na condição de vítimas. Mas, inúmeros fluxos migratórios também foram causados por atos discriminatórios e persecutórios de outras religiões (cruzadas, guerras santas, violações de direitos das mulheres, dos povos tradicionais, negros, e inúmeras outras minorias). Um exemplo recente é o caso de Mianmar que é o 5o país do mundo, hoje, do qual mais saem pessoas em situação de refúgio, por conta da tradição budista que geograficamente está circundada por países muçulmanos, e que vive outro aspecto do fundamentalismo religioso, o nacionalismo budista, que se sente ameaçado pela minoria Rohingya de origem muçulmana.

O fundamentalismo islâmico em países com grande fluxo de pessoas em situação de refúgio

Grande parte dos refugiados são de países onde o Islã é a religião predominante, destes alguns são muçulmanos, mas a maioria dos refugiados não são muçulmanos, como ateus, cristãos, bahais e etc.

Na Síria, por exemplo, ao final de 2012 existiam 728.500 refugiados, por conta da Guerra Civil, iniciada em 2011, no apogeu da primavera árabe, na qual ocorreram diversas manifestações em prol da democracia, sendo que o governo sírio reagiu de maneira violenta e os grupos rebeldes que se armaram.

O Estado Islâmico que já atuava no Iraque decidiu expandir sua atuação para a Síria, por meio da conquista territorial, buscando domínio sobre a narrativa de criação de um mundo islâmico e com a perspectiva de que todos os demais são inimigos. O que modificou o curso da Guerra Civil no país, desviando inicialmente a atenção dos atores já envolvidos no conflito, como os Estados Unidos, que tinha o objetivo principal de tirar Bashar Al-Assad do poder, e passou a focar no consistente avanço do Estado Islâmico.

Dessa forma, há um forte impacto nos fluxos migratórios, pois a Síria em 2015 já é o primeiro país de origem de refugiados no mundo, com 4.9 milhões de pessoas em situação de refúgio. No Brasil, entre 2011 e 2019, são quase 5.000 sírios reconhecidos como refugiados, segundo o Relatório de Refúgio em Números.

Além disso, antes do Estado Islâmico chegar a Síria, o país já tinha seu próprio grupo terrorista a Frente Al-Nusra (Frente de Suporte para o Povo da Síria), que surigu em 2012 e possuía laços de logística e ideológicos com a Al-Qaeda. Este grupo dizia ser suporto ao povo da Síria, mas praticava atos evidentemente terroristas, como ataques suicidas com homens-bomba, carros bombas e incêndios. Em 2016, o grupo anunciou ruptura com a Al-Qaeda.

Nesse sentido, em relação aos grupos terroristas, podemos também perceber que a concentração geográfica dos casos de terrorismo está presente na sua maioria em cinco países: Iraque, Nigéria, Afeganistão, Paquistão e Síria. É por isso, que alguns autores preferem falar em Islamismo Político Radical e não apenas religião, observando o crescimento do terrorismo como resposta política contra ideologias seculares.

Vale lembrar que quando o Império Otomano foi derrotado na Primeira Guerra Mundial, as províncias árabes foram divididas e colocadas sob a administração das potências europeias, com a entrada do colonialismo legitimado à época pela Liga das Nações. Assim, conforme esses mandatos europeus cessam, estes países vão sofrendo golpes de Estado, se tornando um caldeirão étnico-político que trouxe instabilidade e acendeu a fúria extremista na região.

A Al-Qaeda também é exemplo pioneiro desta ideia de Jihad, pois conseguiram alto nível de organização propondo uma mentalidade de guerra santa e cruzadas, opondo o mundo islâmico ao Ocidente, e aplicando a Sharia como meio de contraste à secularização.

Já no Afeganistão, com os acontecimentos recentes e a tomada de poder pelo Talibã, a relação entre o terrorismo e o refúgio fica cada vez mais em voga.

Segundo o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), os afegãos são, hoje, uma das populações mais antigas e numerosas de refugiados no mundo. Os fluxos migratórios no país começaram a chamar a atenção mundial, em quatro momentos principais.

Em 1978, quando, com um golpe de Estado, o Afeganistão é comandado por um regime comunista-marxista que implementou políticas diferenciadas, como a educação laica e a permissão para as mulheres entrarem na política, o que aumentou o conservadorismo religioso, que nunca havia deixado de existir. Grupos estes que foram treinados pelos Estados Unidos, com forte apoio militar e econômico, com objetivo de destituir o poder comunista e enfraquecer a União Soviética. Neste momento eram 400 mil afegãos em situação de refúgio.

Com a invasão e ocupação do país pela União Soviética, evidenciou-se um elemento de política internacional, pois a crise política no Afeganistão passa a outro estágio, em que diversas potências internacionais injetam dinheiro em forte jogo de interesses.

Após o recrutamento de rebeldes, em 1979, os mujahedins declaram uma guerra santa aos soviéticos, luta que vai perdurar por 10 anos. Sendo que, as origens da Al-Qaeda e do Talibã são estes grupos conhecidos como mujahedins.

Com a retirada das tropas da União Soviética do país, o comunismo é derrotado e o Afeganistão se torna uma república islâmica. Neste momento, acontece um duplo movimento, com a repatriação de afegãos que estavam em outros países, em especial no Paquistão, e um outro movimento de êxodo de afegãos para o Paquistão e outros países próximos, com a situação permanecendo grave ao longo dos anos, com violações de direitos humanos.

O que levou à imposição, pelas Nações Unidas, de sanções ao Talibã, com embargos de armas, o que acentuou o fundamentalismo. Nestes 10 anos, até 1988, 3.3 milhões de afegãos já tinham fugido para o Paquistão. Outros 2 milhões se refugiaram no Irã. O fundamentalismo islâmico passa a constituir violação dos princípios básicos do direito internacional.

Com a presença do Talibã, em 1999, já se noticiava sobre a primeira chegada de afegãos no Brasil por meio de acordo de reassentamento com o ACNUR (afegãos que viviam em campos de refugiados no Irã e na Índia), mas pouco tempo depois as famílias saem do Brasil, pois não foi possível realizar uma integração entre elas e a sociedade brasileira. Segundo o Relatório de Refúgio em Números, entre 2011 e 2019 cerca de 100 afegãos foram reconhecidos como refugiados no Brasil.

Em 2001, a presença dos Estados Unidos no Afeganistão, buscando Osama Bin-Laden, levou muitos a ter receio pela presença estrangeira no país, e a um grande e contínuo fluxo de afegãos em situação de refúgio.

Hoje, como podemos ver nas cenas caóticas televisionadas, com a saída das tropas americanas do Afeganistão o medo do fundamentalismo se alastra. Segundo a ONU, 80% dos que abandonaram suas casas desde maio de 2021 são mulheres e crianças. São 250 mil pessoas que migraram de maneira forçada nos últimos 3 meses de avanço do Talibã pelo país. Desde o início de 2021 quase 400 mil pessoas saíram de suas casas se dirigindo, na sua maioria, para a capital Cabul, onde hoje a imprensa nos mostra uma legião de mulheres e crianças dormindo nas ruas.

Em 2011, em relatório do ACNUR, os afegãos eram o maior grupo de pessoas em relação à sua nacionalidade, que requereu asilo em Estados-membros da União Europeia. Neste relatório, foi utilizado o termo “recrutamento forçado” para indicar aquelas situações onde indivíduos eram forçados a se unirem ao Talibã sob ameaças e violência. O relatório elucida ainda esta situação para os países europeus, alertando para a dificuldade de atestar e distinguir o recrutamento voluntário do recrutamento forçado feito pelo Talibã, sendo que este recrutou um grande número de refugiados do Afeganistão e Paquistão, com casos de doutrinação de crianças nas madrassas (escolas muçulmanas) e nos campos de refugiados e de deslocados internos.

O Paquistão não é parte da Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967 sobre o estatuto dos refugiados. O que o Paquistão fez ao longo dos anos foi uma série de acordos com o ACNUR, como exemplo o Acordo de Cooperação de 1993, ou acordos entre o ACNUR e o próprio Afeganistão como o SSAR (Solution Strategy for Afghan Refugees) entre o Afeganistão, o Paquistão, o Irã e o ACNUR.

No ano de 2000 o Paquistão chegou a fechar oficialmente suas portas para o Afegãos e apesar da atuação do Talibã na região deixou de considerar os afegãos como refugiados propriamente ditos para vê-los como migrantes econômicos o que impacta nos direitos destes indivíduos, por exemplo um migrante econômico não tem direito ao non-refoulement, não tem direitos de acesso à saúde ou à educação.

Só em 2001 que houve um acordo do Paquistão com o ACNUR pra fazer uma triagem daqueles afegãos que entravam no país, se eram refugiados ou migrantes econômicos, mas poucos meses depois tivemos o ataque às Torres Gêmeas, o que dificultou ainda mais a situação dos afegãos, dando lugar a uma série de MoU (Memorandos de Entendimento, parte da Soft Law).

Já em relação ao Iraque, há décadas o país vive em constante instabilidade. O Estado Islâmico nasceu no Iraque em 2006, no contexto da ocupação anglo-americana no país. A emigração forçada do país também está no rol de nacionalidades que vem impactando as políticas migratórias europeias. 

O outro lado da moeda do fundamentalismo: a xenofobia e a islamofobia

A partir deste contexto histórico, político e social, podemos perceber um impacto diferente dos fluxos migratórios, em especial aqueles em direção a Europa.

A migração islâmica começa a ocorrer de forma igualmente forte com a crise do Petróleo da década de 70 e 80. Todos estes países dos quais falamos, Síria, Iraque e Afeganistão estão no Oriente Médio, região onde se concentram as maiores reservas de petróleo do mundo.

Assim, de acordo com Allievi, estes migrantes iniciais ficaram sendo apenas imigrantes e não eram percebidos exatamente como islâmicos, por exemplo os turcos na Alemanha eram apenas turcos, os hindus-paquistaneses no Reino Unido eram considerados imigrantes das ex-colônias, os algerianos ou argelinos (da Argélia na África) na França.

Eram gerações de migrantes islâmicos que viviam sob uma nova ótica de que acabada a crise, possivelmente voltariam aos seus países de origem. Allievi vai chamar esta ideia de “mito do retorno”.

Mas, aproximadamente uma década depois, estes migrantes começam a ser notados como islâmicos. Várias razões levaram a isso, a revolução iraniana que vai transformar o Irã numa República Islâmica Teocrática, o islamismo que começa a ser percebido como um ator importante no plano geopolítico, a questão da Palestina mais pra frente com a criação do Estado de Israel que vai se tornar a causa Palestina e mais décadas à frente o atentado às Torres gêmeas nos EUA.

Em 2015 Donald Trump pede a suspensão total e completa da entrada de muçulmanos nos Estados Unidos até que os legisladores do país conseguissem “compreender” o que estaria ocorrendo. Cidadãos do Irã, Líbia, Síria, Iêmen, Somália e Chade sem parentes nos Estados Unidos ou com outras conexões já estabelecidas com o país são impedidos de entrar no país.

Portanto, inicia-se um conflito dos símbolos islâmicos nos espaços públicos europeus, como em 2021 em que alguns países vetaram o uso da burca em espaços públicos. E em uma reportagem da DW de 2017, verifica-se que cerca de 60 sírios que integraram uma milícia islâmica ligada à rede terrorista Al-Qaeda conseguiram chegar à Alemanha ao se passarem por refugiados e dezenas deles chegaram, inclusive, a fazer pedidos. As pesquisas apontam que a percepção negativa dos europeus sobre a população muçulmana só tem crescido.

As dúvidas que ficam são: esta ascensão do Talibã seria uma nova etapa na construção desta ameaça islâmica de outro lado? Como que o reconhecimento de um governo fundamentalista vai agora afetar a área transatlântica?

Portanto, com a ameaça de que talibãs, terroristas e outros grupos simbólicos deste fundamentalismo religioso estivessem se aproveitando dos fluxos migratórios para a entrada na Europa, aquele migrante islâmico deixou de ser visto como um imigrante econômico ou um imigrante de uma ex-colônia europeia para ser visto como um muçulmano. Em especial a partir dos anos 2000 quando o elo entre segurança internacional e migração começa a ficar evidente.

FONTES:

HELBLING, M. and MEIERRIEKS, D. Terrorism and Migration: An Overview. Cambridge University Press – British Journal of Political Science, 2020. p. 1–20. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/british-journal-of-political-science/article/terr orism-and-migration-an-overview/2D92D099D870D7D8E606C39E683D3E89#. Acesso em: 29 set. 2021.

SCHMEIDL, Susanne. (Human) security dilemmas: long-term implications of the Afghan refugee crisis. Carfax Publishing – Third World Quarterly, vol. 23, n. 1, 2002, p.7–29.

EUA. Special Immigrant Visas for Afghans – Who Were Employed by/on Behalf of the U.S. Government. U.S. Department of State – Bureau of Consular Affairs2021. Disponível em: https://travel.state.gov/content/travel/en/us-visas/immigrate/special-immg-visa-afgha ns-employed-us-gov.html. Acesso em: 29 set. 2021. 

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